outubro 14, 2008

Eu deveria

Eu deveria estar escrevendo. Eu deveria estar estudando. Ou, eu deveria estar é dormindo.

Na verdade, a esta hora tão avançada, em que um dia passa a ser o outro (mas eu me engano dizendo que só deixa de ser um para ser o outro depois que eu durmo e daí eu fico me enrolando e tentando esticar ao máximo a quantidade de horas de um dia ao manter os olhos abertos, mesmo que a mente já esteja desligada desde que o dia oficialmente deixou de ser hoje e passou a ser ontem, independente do conceito a ele atribuído por mim.), eu deveria estar dormindo.

Deveria estar descansando. Deveria estar ao menos lendo, que é coisa simples de conciliar entre o deitar-se e cair no sono.

O certo mesmo é que eu deveria estar estudando, ou escrevendo, ou produzindo alguma coisa. Mas não.

Eu deveria estar mudando de vida. Não exatamente agora, neste instante, porque nada de muito importante me é possível realizar, considerando que já estou de pijamas e já escovei os dentes e agora me debato entre deitar recostada aos travesseiros ou sentar com as costas na parede, para evitar qualquer tentação de fechar os olhos "só por um minuto" e depois não conseguir mais acordá-los.

Eu deveria estar mudando a minha vida. Jogando tudo pro alto, esquecendo desafetos, desavenças, desamores e seguindo em frente. Deveria estar atirando para trás as dores e as perdas e cortando os laços que me prendem em definitivo ao estar aqui e deveria estar dando o primeiro passo para os próximos caminhos.

Eu deveria ao menos saber para que lado ir. Deveria ter uma vaga idéia de qual caminho seguir, que direção tomar, nessa nova liberdade. Eu deveria deixar as pesadas bolas de ferro que ainda arrasto, porque elas só me fazem ficar cansada e sem energia para o que realmente importa, e deveria simplesmente ir.

Eu deveria estar cuidando de mim. Deveria deixar uma parcela do meu altruísmo de lado e deveria desenvolver um pouco mais de egoísmo, assim poderia (deveria) me proteger mais e me resguardar e evitar de me deixar levar por tão pouco, ou de me magoar tão facilmente.

Eu deveria ser menos preocupada com a educação alheia (ou, digamos, a falta de educação alheia, que lhe permite jogar lixo na rua e maltratar animais e destruir o meio ambiente e usar carro em vez de transporte coletivo e usar o bem público para interesses privados e tentar sempre dar uma volta nas regras da coletividade chamando isso de "jeitinho" e encarar essa necessidade de "jeitinho" como uma característica positiva ao invés de assumir seu nome verdadeiro, que é corrupção, e mexer no "meu queijo" e falar bobagens quando deveria calar para ouvir melhor e se deixa imbecilizar ao assistir programas degradantes que não fazem pensar e optar por não pensar porque é mais simples e menos doloroso, entre outras coisas) e mais preocupada com os efeitos diretos disso tudo do mundo para comigo, especificamente. Assim eu poderia ter mais controle sobre a minha vida e o meu destino.

Eu deveria desistir, de uma vez por todas, de lutar com moinhos, gigantescos moinhos desativados, que só existem na minha imaginação. Eu deveria era usar essa imaginação toda para alguma coisa prática e útil. E por isso continuo a pensar que eu agora, neste exato instante, deveria estar escrevendo. Ou estudando. Ou as duas coisas.

Porque eu deveria ter a coragem de abrir mão de uma série de prazeres fugazes e secundários e me concentrar na atividade que me completa e que me realiza. Em vez de ficar tentando achar formas de sustentar esse vício, essa compulsão, eu deveria estar é sucumbindo a ela, entregando me completamente, de alma e sangue, a essa coisa mesquinha e solitária e tão deliciosa que é escrever.

Acontece que me falta o pulo no escuro, o passo no precipício, o avançar frente ao desconhecido. Acontece que eu me importo. Me importo se vejo alguma injustiça no mundo e me agito que ninguém mais se espanta. Me importo e me sinto responsável. Me sinto na obrigação de fazer alguma coisa, de mudar alguma coisa, de dar um soco na cara do mundo pra ver se ele acorda e resolve mudar sozinho, pra me deixar em paz com as minhas próprias necessidades de mudança.

Acontece que eu penso, também, que deveria estar dormindo, uma vez que não estou escrevendo, nem estudando, nem lendo, nem dando um soco no estômago do mundo, nem fazendo nada de exatamente útil ou produtivo. Ao menos, deveria estar descansando, reorganizando os esforços, colocando as idéias no lugar e as vontades em ordem de importância.

Eu deveria estar descansando a mente, desligando dos pensamentos sobre o que poderia estar fazendo ou sobre como seria uma pessoa melhor, ou sobre a maneira ideal de mudar o mundo, ou sobre o quando de sofrimento eu agüento e o quanto eu tenho que abrir mão.

Eu deveria estar deixando isso um pouco de lado, esse "martirismo" desnecessário, e deveria estar me concentrando em um heroísmo saudável, que eu não saberia bem explicar mas que se opõe diametralmente ao martirismo, esse, que sufoca e impede de seguir em frente.

Eu deveria é largar tudo e seguir em frente. Assim não estaria mais, nunca mais como agora estou, preocupada com a hora, com o avançado da hora, tendo que assumir que o hoje que chamo de hoje já é oficialmente ontem, mesmo que eu não tenha ainda ido dormir. Assim não estaria perdendo meu tempo com pensamentos e ações que não me levam a lugar nenhum mas me tomam tempo e espaço e energia, energia e tempo que poderia estar investindo em atividades que me reorganizassem meu espaço, que me pusessem de volta aos eixos, que me fizessem seguir novamente a trilha que sempre imaginei pra mim todos esses anos em que fiquei pensando e sonhando e imaginando quando deveria, certamente, ter ido dormir mais cedo, para acordar mais cedo e aproveitar melhor o dia.

Aí acontece sempre como acontece agora, esta tentativa patética de esticar os minutos, tentar ganhar mais dia do meu dia, quando na verdade eu ganho apenas mais olheiras e mais cansaço e mais minutos de atraso na contabilidade diária.

Ao menos se eu estivesse estudando. como gostaria. Ou escrevendo, como deveria. Ou dormindo, como me faria descansar e ficar pronta pra outra.

Ao menos se eu parasse de vez com essa mania do futuro do pretérito, eu poderia realmente deixar o passado para trás e passaria de subjuntiva para indicativa. E o futuro seria sempre conjugado a partir do presente, que é a ordem certa das coisas.

Mas nem isso eu consigo mais pensar direito, porque já é amanhã, enquanto eu continuo a pensar no que poderia ter feito, ou deveria ter feito ainda ontem e não fiz.